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O barro criativo - texto de Vítor Rodrigues

Texto escrito pelo Dr. Vitor Rodrigues; psicólogo, psicoterapeuta e escritor.
Sugiro a leitura dos seus livros e artigos.
Links: http://www.youtube.com/@VitorRodrigues999 
https://vitorrodriguespsicologo.weebly.com/artigos.html

Os mitos de criação, explicitando o modo como o mundo foi criado, variam muitíssimo conforme os lugares e os povos. Não pretendo aqui discuti-los pois estou especialmente interessado nos que se referem à criação dos seres humanos. Nestes, é comum a afirmação de que os seres humanos foram criados a partir do barro [1].

- Na Mitologia grega, os primeiros deuses a governarem a Terra, antes de Zeus e dos deuses do Olimpo, foram os Titãs, chefiados por Cronos (o deus do Tempo). Estes foram vencidos numa batalha contra os deuses olímpicos e Zeus tornou-se o novo deus todo-poderoso. Prometeu e Epimeteu, que eram Titãs mas não tinham participado nesta guerra e não foram aprisionados no Tártaro (uma parte do submundo grego), foram encarregues de criar o ser humano. Prometeu (o tal que roubou o fogo dos deuses para o doar à Humanidade) modelou a figura humana a partir do barro (ou da terra) e, depois, a deusa Atena (a deusa da sabedoria) insuflou-lhe vida.

- Na Bíblia, no Genesis 2:7, diz-se que O Senhor Deus formou o homem a partir da poeira do chão e soprou nas suas narinas o alento da vida; e o homem tornou-se uma alma vivente”.

- No Alcorão, (Alcorão 23:12), diz-se que Deus criou o homem a partir do barro.

- Na Mitologia egípcia, um dos deuses primordiais, Khnum, também chamado de “divino oleiro”, o deus das fontes do Nilo (cujas inundações traziam barro e vida), criou os corpos das crianças humanas numa roda de oleiro e colocou-os nos úteros das suas mães.Também se diz que criou os outros deuses a partir de si mesmo.

- Na Mitologia suméria, os deuses Enki ou Enlil criaram a Humanidade para servi-los a partir de barro e sangue (note-se que, para alguns, o sangue é o veículo da energia da Alma).

- Na Mitologia Zoroastriana, o boi primordial e, depois, o homem primordial, são criados por Ahura Mazda a partir da lama.

- Na Mitologia chinesa, os seres humanos foram criados por Nuwa, a deusa-mãe, a partir de terra amarela.

- Os Maoris diziam que Tāne Mahuta, deus da floresta, teria criado a primeira mulher a partir do barro e ter-lhe-ia insuflado a vida.

- Para os antigos Incas, o deus criador Viracocha também teria formado os seres humanos a partir do barro.


Numa interpretação antropológica, é fácil constatar a ideia de que a Criação deve ter lugar a partir de uma substância primordial sobre a qual uma força divina actua, dando-lhe forma e insuflando-lhe vida. Também é verdade que, para os povos antigos, o barro era um elemento de extrema importância, pois graças a ele podiam criar formas úteis - e fundamentais para o desenvolvimento da civilização. Admite-se também que a primeira escrita sistemática terá sido criada a escrita cuneiforme dos antigos sumérios, gravada em tábuas de argila desde há cerca de 6.000 anos. Terá sido antecedida por notações encontradas em objectos de argila e datados de uns 35.000 anos.



Num artigo recente, Finkelstein [2] enumera 7 modos “inesperados” de a argila e a moldagem serem terapêuticas. Inspiremo-nos nesse artigo.


Prazer táctil. Geralmente gostamos de “pôr a mão na massa”. O trabalho no barro espelha-nos, dá-nos a impressão de estarmos efectivamente a expressar algo de nós ao criar algo que nasce, assim, do nosso corpo e mente. Um pouco de nós fica na peça criada - mais tarde, a mesma peça permanece como um espelho: ficámos, de certo modo, presentes nela.

Uma experiência total. O trabalho com o barro implica olfacto, tacto, visão, audição (ao escutar a roda, por exemplo), por vezes até o gosto. Tem um lado sensual óbvio e, ao mesmo tempo, implica a nossa mente imaginativa e, muitas vezes, uma expressão das nossas emoções conscientes ou inconscientes (quando nos deixamos “levar”, quando nem sabemos o que iremos fazer antes de o fazer).

Expressão consciente e inconsciente. Ao modelar o barro, sentimos que estamos no controlo e também que estamos a expressar um pouco do que somos. O barro sem forma recebe a nossa marca, que lhe dá forma. Podemos moldá-lo de acordo com as nossas emoções e os nossos pensamentos, colocando nele esforço, delicadeza, formas de muitos tipos, traços, escrita. Mais tarde, o peça criada fica como uma memória de nós mesmos: “fiz isto outrora”. Desejos, aversões, medos, fantasias de todos os tipos podem ficar ali plasmados. Podemos até surpreender-nos com o que fizemos e interrogar-nos acerca do que surgiu de dentro de nós. Por vezes, no barro, partes de nós menos conscientes tornam-se visíveis-palpáveis como coelhos que saíram da toca (onde estavam invisíveis).

Antídoto cultural. A ideia aqui é que o trabalho com o barro exige tempo, tem o seu ritmo, não admite pressas nem a corrida para resultados demasiado imediatos. Além disso, em lugar da mente ansiosa sempre a correr para o futuro incerto, obriga-nos a sentir directamente o que está a acontecer “aqui e agora” e a dar-lhe atenção. A moldagem focaliza-nos. Também nos ensina a ter paciência e a aceitar a imperfeição. Existe o tempo da moldagem e o tempo do fogo, para completar a peça e “solidificar” o que fizemos, dando-lhe permanência. O fogo representa também a energia criadora. Falaremos disso adiante.

Libertar e expressar emoções, mesmo as mais negativas. O barro pode ser agredido, golpeado, atirado, insultado e, mesmo assim, permanecer como matéria remoldável. Expressar emoções no barro é seguro e ajuda-nos a senti-las e a vê-las. Mesmo a peça completa pode ser destruída sem problema - e, às vezes, destruí-la pode ser bastante satisfatória. Sentimo-nos com pleno poder para recomeçar. Também sentimos o poder de criar ou destruir ou ambas as coisas, numa busca de expressão e aperfeiçoamento. Também vamos aprendendo e evoluindo no trabalho com o barro - e a felicidade humana está do lado da expressão e do crescimento [3].

Meditação. Trabalhar o barro pode ajudar-nos a sair mais da cabeça para estar mais no corpo e no tempo presente. Nesse sentido, pode ter muito de meditativo e de fluxo interior. Além disso, deixar a Alma, ainda mais que o nosso corpo, actuar no barro pode tornar-se numa verdadeira meditação…

Um senso de comunidade e de pertença. O trabalho no barro, muitas vezes feito em conjunto e em aprendizagem e/ou partilha, ajuda a criar um sentimento de grupo, de cumplicidade e propósitos comuns. Do mesmo modo, o respeito pelo trabalho uns dos outros e um senso de leveza, mesmo de brincadeira, fazem bem a todos. A atmosfera criada ajuda a quebrar com a dureza do quotidiano e a levar-nos mais longe no mundo interior.

O trabalho com o barro, para Finkelstein, implica ainda trabalhar um material em bruto, com muitos milhões de anos de idade, para criar algo que nunca existiu antes. Para mim, implica igualmente trabalharmos sobre o “velho” eu para permitirmos que este, ao criar algo novo no barro, se recrie a si mesmo. Ao trabalhar o barro estamos, em certo sentido, a projectar nele um pouco de nós mesmos/as e a refazer-nos.


Um texto para o trabalho dos oleiros.


Toca o barro. O teu corpo em contacto com a massa, as tuas mãos prolongando o cérebro, os teus sentidos à escuta das formas de dentro e de fora. Colocas-te no barro e o barro mostra-te em muito do que és. Recebe os teus sentimentos, muda de forma com a tua imaginação, também se solidifica com o teu fogo. As formas que ali plasmas saem de ti, filhas da tua mente e das tuas emoções. Por detrás delas, a tua Alma. Fica bem presente, qual tu és, e deixa-te ser com a substância que tocas. Acalma-te com o barro mas, antes, deixa-te lutar com ele. A tua mente, focada no barro, deixa de estar dispersa. As tuas emoções, colocadas no barro, ficam claras e perdem o poder sobre o teu corpo. Quando moldas o barro, também te moldas um pouco. Quando conversas com ele, falas de ti. A tua alma, colocada no barro, abençoa quem vier a tocá-lo, se o quiseres.

Agora imagina-te como um ser divino criando formas e insuflando-as depois com vida. Podes até tornar sagrado e silencioso o que moldas. Podes sentir que participas da Criação e, no fim, vês que o que fizeste é bom. Não importa se é perfeito - é bom porque foi criado, é bom porque foi feito com terra-mãe, e é bom porque és tu.

O que ficará, mais tarde, é um pedaço de ti que poderá resistir por muito tempo.

Quando chegar o momento da cozedura, poderás ainda, em silêncio meditativo, colocar na peça que recebe o fogo um pouco mais da tua alma. Poderás projectar nela a tua intenção, um pouco de ti habitando a peça insuflada assim. Com a tua respiração, uma centelha do teu ser enviada para a matéria animada. Transformando, transformas-te. A matéria bruta modifica-se, como tu. Como quando, outrora, estátuas eram feitas para serem habitadas pelos deuses, peças eram feitas para transportar as suas oferendas.

No fim, tudo o que fizeres com o barro valerá a pena.


Vítor Rodrigues









































Babilónia


Com pátios interiores e com palmeiras
Com muros de tijolo com pequenos tanques
Com fontes com estátuas com colunas
Com deuses desenhados nas paredes de barro

Com corredores e silêncios e penumbras
Com vestidos de linho tocando a pedra pura
Com cinamomo e nardo
Com jarras donde corria azeite e vinho

Com multidões com gritos com mercados
Com esteiras claras sob os pés pintados
Com escribas com magos e adivinhos
Com prisioneiros com servos com escravos
Com lucidez feroz com amargura
Com ciência e arte
Com desprezo
Babilónia nasceu de lodo e limo


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto




Arte Poética I


Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado. O sol é pesado e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas não caibo na sombra. A sombra é uma fita estreita. Mergulho a mão na sombra como se a mergulhasse na água.

A loja dos barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois da taberna fresca e da oficina escura do ferreiro.

Entro na loja dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida de preto. Está em frente de mim rodeada de ânforas. À direita e à esquerda o chão e as prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e amontoadas: pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro: barro cor-de-rosa pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar.

A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética.

Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação.

Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.

Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível.

Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis, nem a Deméter, nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino.

O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece.

Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão. Semelhante ao corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa.

É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Notas: Arte Poética I foi publicado pela primeira vez na revista "Távola Redonda", Dezembro 1962. Seguidamente a Arte Poética I e II foram publicadas com alterações em "Geografia", 1967















[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Creation_of_life_from_clay



[2] Finkelstein, Jo-Ann (2020): 7 unexpected ways clay is therapeutic. Psychology Today, em https://www.psychologytoday.com/gb/blog/demystifying-talk-therapy/202003/7-unexpected-ways-clay-is-therapeutic



[3] Rodrigues, Vítor (2015): Constrói a tua Felicidade. Lisboa: A Esfera dos Livros.