Sobre a ansiedade
Ok está percebido que sofro um bocado com "ansiedade" e há momentos de tristeza com vontade de chorar (o início da "depressão"). Obviamente, antes de mais nada vais tentar perceber o que é isso exatamente, para perceber o que se está a passar contigo. Vou resumir a história e partilhar aquilo que me teria sido útil ter encontrado quando comecei este mini estudo, já que não é nada divertido viver assim.
Li um livro chamado "300 mil anos de ansiedade" do Gustavo Jesus. Recomendo. Com este livro aprendi várias coisas sobre a ansiedade, que vão ocupar os próximos parágrafos deste texto:
Há 300 mil anos o homem primitivo já sentia ansiedade. Ansiedade é uma resposta do nosso corpo face uma situação de perigo com o objetivo de se proteger e de sobreviver a essa ameaça. No livro o autor usa repetidamente o exemplo do Leão. Se o homem primitivo se cruzava com um Leão, um sinal de alerta é emitido ao cérebro - a ansiedade faz o seu papel. O cérebro, por sua vez, desencadeia um conjunto de ações no corpo que vão ajudar este indivíduo a safar-se do Leão: adrenalina é bombeada para o corpo todo que até treme, sangue para os músculos, batimento cardíaco acelera, é para fugir e correr!
Ora, se a ansiedade existe desde o tempo do homem primitivo e se se manteve enquanto uma característica vantajosa para a sobrevivência da espécie, não sendo eliminada ao longo do tempo nessa filtragem da evolução da espécie, deve ser porque serve para alguma coisa. Hoje em dia não é muito provável que nos cruzemos com um Leão na rua (à pala do ser humano, devem estar quase todos mortos) mas de facto dá jeito reagir rapidamente (e sem sequer pensar) a alguma eventual situação de perigo, de facto o cérebro adianta-se nessa resposta do corpo com o objetivo da sobrevivência.
O problema é que ter uma conversa com alguém, estar atrasado para um compromisso ou até mesmo estar parado a olhar para o ar não é uma situação ameaçadora, mas hoje em dia os nossos cérebros facilmente interpretam uma situação normal do dia a dia como uma ameaça e um perigo.
Pois é. Então sentimos ansiedade quando não existe um perigo. A "peça" que se encontra entre o cérebro e a medula óssea (agora não me lembro do nome), responsável por interpretar "o perigo" vai erradamente informar o cérebro que é preciso fugir de um Leão (imaginário). E o cérebro faz o seu papel, desencadeando os sintomas já conhecidos da ansiedade. Estes sintomas para além de serem desconfortáveis vão potencialmente dar origem a problemas de saúde, já que o nosso corpo não aguenta este estado de ansiedade em permanência, como problemas de estômago (o organismo não vai desperdiçar energia em fazer a digestão quando estamos a fugir do Leão), cardíacos (demasiado esforço durante demasiado tempo), de fertilidade (hormonas reprodutivas não são produzidas quando interessa é fugir), entre outros, então diversas doenças surgem e pelo que tenho vindo a perceber os sintomas que vão surgindo deste modo constante de "alerta" variam muito de pessoa para pessoa.
Mas não é preciso fazer desta informação mais um alarme, porque isto tem solução, é preciso uma pessoa informar-se. Foi o que eu pensei e fiz e estou a partilhar. Para já, porque acho que muitos de nós sofremos com ansiedade e muitos nem nos apercebemos (como eu até o cardiologista me dizer para eu ir a um psicólogo, ai não afinal é melhor é começar já a tomar bloqueadores beta, que "ajudam o coração a bater mais devagar, reduzem a pressão arterial e protegem o coração dos efeitos nocivos da atividade prolongada da adrenalina").
- PRIMEIRO - A disfunção dos dias de hoje dos nossos cérebros que nos leva a sentir ansiedade desnecessária - sim a ansiedade é uma disfunção das estruturas cerebrais que comunicam entre si, ou seja é uma desregulação do sistema de alarme do nosso cérebro - é um desiquilíbrio químico, relacionado com os ácidos que são produzidos naturalmente pelo organismo.
POR FAVOR não digam a uma pessoa com ansiedade ou depressão que precisa é de respirar fundo e de tirar umas folgas (estão a desvalorizar aquilo pelo qual essa pessoa está a passar). Isso pode ajudar a relaxar, claro, mas o problema é químico e não deve haver vergonha alguma (pelo contrário acho que exige coragem) de procurar ajuda e em alguns casos de tomar medicação - químicos - que vão compensar esse desiquilíbrio. CBD, chás, ansiolíticos, anti-depressivos.... interferem quimicamente com o nosso cérebro. Claro que em casos mais graves de ansiedade será necessário recorrer a medicação (com a orientação de um médico) e em casos de ansiedade ligeira ou moderada a valeriana ou CBD até pode ajudar, mas em qualquer dos casos o objetivo é regular as estruturas químicas do cérebro. Quero com isto dizer que isto não é um problema "imaginário", "da nossa cabeça", não; é fisico e deve ser encarado e tratado como tal.
Podemos tratar os sintomas da ansiedade (com calmantes, etc.), mas estamos a disfarçar o problema. Os sintomas terão sempre de ser tratados, mas se não orientarmos as nossas ideias e a nossa mente - os bastidores da ansiedade - não estamos a resolver a nossa situação. Ou nos orientamos sozinhos, e conseguimos modelar a nossa realidade de forma a não sermos tão afectados por ela (pessoalmente na minha opinião ser espiritual, acreditar que existe um Criador disto tudo e estar a par do plano maior do Universo ajuda) ou procuramos ajuda e falamos com um psicólogo ou psicoterapeuta, que podem ajudar-nos a dissolver crenças não benéficas (às vezes relacionadas com o passado e nem fazemos ideia).
Mesmo assim, a parte fisica e quimica também tem de ser "reparada". Conheço uma pessoa que me contou a história dela, e após ter-se divorciado, tudo ok no trabalho, vida em ordem e ideias no lugar, um dia estava à mesa com os dois filhos pequenos e deu-lhe de repente "não consigo fazer isto", seguiu-se um ataque de pânico, voltou a ir ter com a médica e retomou a medicação, porque apesar de já ter a vida em ordem, quimicamente o cérebro ainda não estava em ordem.
Pois é, isto até é complexo eu não fazia ideia.
Temos de passar a ver este tratamento como uma coisa mais natural, sem estigmas, não é um sinal de fraqueza (pelo contrário) e devíamos todos conhecer melhor um pouco dos distúrbios mentais mais comuns, já que hoje em dia muitos de nós e dos que nos rodeiam estamos sujeitos a passar por eles. O cérebro do ser humano não consegue adaptar-se à realidade envolvente à mesma velocidade a que essa realidade evolui, a pressão exterior desta sociedade desiquilibrada é muita, as sirenes de alarme disparam nas cabeças das pessoas porque isto é tudo demasiado.
- SEGUNDO - Como os medicamentos (devidamente receitados por um médico) podem cair mal em algumas pessoas (muitas dizem-me que foi o melhor que fizeram e sentem-se muito melhor - e acredito) ou gerar outros desconfortos, podemos considerar só tomar esses medicamentos quando a ansiedade já está em níveis altos (quando alguém não consegue sair de casa, por exemplo, ou a sua vida está a ficar comprometida por causa deste problema). Se a ansiedade for leve a moderada existem terapias complementares - soluções não medicamentosas - que podemos usar para que o problema não se agrave. Isto interessa-me e era aqui que queria chegar, se calhar todos devemos ter isto em conta de forma a que o nosso estado mental tenha mais saúde e menos probabilidade de cair na armadilha destes dias que é a ansiedade. Já me receitaram ansiolíticos algumas vezes, outros medicamentos também, sempre resisti, não sei se fiz bem (confesso) mas sou teimosa e tenho noção que esse recurso existe (e ainda bem), é bom saber que ele existe mas enquanto não estiver naquele ponto "não me interessa só quero que esta tortura acabe" vou resistir. Já lá estive mas voltei logo e foi uma chapada na cara: será que estás a fazer tudo o que está ao teu alcance para seres saudável? Não estava. Agora (daquilo que estudei até ao momento) estou.
As primeiras muletas a que recorri foi a valeriana (comprimidos de venda livre da farmácia) e que continuo a recorrer hoje em dia quando me sinto mais aflita. Depois uma amiga enfermeira sugeriu-me um suplemento chamado "calm-life" à base de plantas calmantes, tomei 6 por dia durante vários meses e acho que foi o que me segurou. Os florais de Bach "SOS Rescue" esse frasquinho anda sempre comigo, porque é bom saber que se ficarmos mais aflitos temos algo que nos vai ajudar no bolso, isso transmite segurança e acalma. Óleo essencial de alfazema para os pulsos pois esse cheiro é calmante. Por fim pastilhas elásticas, tem um impacto mínimo mas reconheço que ajuda.
Foram estes os recursos que usei inicialmente, não me resolveram o problema mas seguraram-me e deram-me tempo para perceber melhor o assunto.
Sobre a depressão: Outra coisa curiosa que aprendi ao ler o livro que estava a falar. A depressão, assim como a ansiedade, acompanhou o homem primitivo até aos dias de hoje. Porque existe alguma "utilidade" na sua existência, portanto. No exemplo do Leão, mais uma vez, o que é que acontece: Se o homem primitivo não conseguir fugir do Leão (se estiver encurralado, por exemplo) vai ter que lutar com ele. Das duas uma: ou morre, ou fica ferido. Ficando ferido, o corpo emite sinal ao cérebro para atuar sobre essa ferida, repondo os tecidos da pele e combatendo uma eventual infeção. Quando o cérebro recebe esse sinal e as moléculas inflamatórias são "ativadas", o comportamento do indivíduo é também alterado de forma a colaborar com esse tratamento da ferida: deixa de ter vontade de fazer seja o que for, não tem paciência para nada nem ninguém, basicamente entra num estado depressivo. Txaram.
Porque é que a ansiedade e a depressão muitas vezes andam juntas? Porque quando o homem primitivo sabe que vai ter que lutar com o lobo: alarme, ansiedade entra em ação e informa as células inflamatórias antecipadamente que provavelmente vai ser preciso reparar uma ferida, então essas células entram em ação incluindo na mudança de comportamento... Então um estado de ansiedade pode levar a um estado de depressão. Achei isto curioso.
Ansiedade: porquê eu? Predisposição genética + eventuais traumas de infância + alarmes à minha volta. Agora para a frente é o caminho.
Controlo da ansiedade ou estratégia preventiva:
Ocupar o pensamento (ou distrair dos eventos que possam provocar ansiedade).
Diminuir emoções negativas e gerar emoções positivas.
Ver sobre mindfulness / aqui e agora
Ter um hobbie ou passatempo pode ajudar muito. Se conseguirmos começar a criar algo (seja com o barro, com tintas, com tecelagem, nem que seja a pintar cadernos infantis experimenta!) estamos focados nesse momento e essa distração vale ouro. Quantas vezes vêm à cabeça imagens de acontecimentos que podem vir a acontecer, de acidentes com familiares, situações de pânico, tudo criado pelo medo, os pequenos demónios a quererem tomar conta de mim, sacaninhas mando-os logo embora, vou logo para a cerâmica vejo o pincel a escorregar a tinta a preencher a superfície a cor a surgir, imagino algo que me entusiasme fazer. O medo vai fora e fica o amor, a aceitação, a entrega. Se for para morrer, vou em paz e está tudo bem.
Ao mesmo tempo o que faço é:
Respirar pela barriga
- Objetivo: aumentar o tempo em que se está a expirar em detrimento do tempo a inspirar. Ao fazer isto, as proporções de oxigénio e dióxido de carbono disponíveis no nosso sangue são alteradas, o que dá ao cérebro sinal para acalmar.
- Aumenta a atividade do sistema nervoso parassimpático (sistema "consciente" e que controlamos, que está mais ativo quando expiramos) sobre o simpático (sistema autónomo envolvido nas respostas automáticas de stress, ou seja o sistema que liga os alarmes todos sem a gente controlar).
Fisicamente, ser o mais saudável possível. Toda a inflamação (excesso de peso, fumo nos pulmões, alimentos processados, falta de água) é um stress para o corpo e essa inflamação vai ativar as tais moléculas inflamatórias e mandar abaixo um bocadinho da nossa alegria de viver.
Sugestão para deixar de fumar: primeiro, deixar de fumar nicotina e passar a fumar CBD (sem THC!) depois substituir o fumo pelo vapor e vaporizar CBD. Foi assim que deixei de fumar, parece-me uma solução estupidamente fácil para quem quiser mesmo deixar de fumar (e não é sacrifício nenhum).
Exercício físico. Para além de distrair e gerar emoções positivas, o exercício físico liberta endorfinas (substâncias produzidas pelo cérebro que resultam numa sensação de prazer.
- Reduz moléculas inflamatórias que propiciam a ansiedade
- Produz sintomas físicos semelhantes aos da ansiedade MAS associados a experiências agradáveis e não ameaçadoras, criando habituação aos sintomas.
- Dá ao corpo possibilidade de usar os recursos biológicos que o sistema de alarme mobilizou e disponibilizou (aumento da frequência cardíaca e respiratória, adrenalina, músculos) o que resulta num alívio da ansiedade.
Gostava de poder convencer os outros de como isto é mesmo verdade. Às vezes parece shá-lá-lá, ou eu pensava que era até ver que funciona. Falta de tempo não é desculpa, eu com 4 cães um filho trabalho a full time e o namorado no estrangeiro consigo acordar mais cedo ligar o tablet e dançar fitness das 7h às 8h não digam a vocês próprios que não têm tempo, eu também não tinha até isto passar a ser uma PRIORIDADE.
Nutrição. Não vou falar aqui sobre como alimentos processados são veneno, enquanto que frutas, legumes e leguminosas fazem bem, isso tudo é óbvio e mais vale metermos na cabeça de uma vez por todas que somos o que comemos.
- Ómega 3, Vitamina D e Magnésio são bons suplementos a considerar começar a tomar, têm ação anti-inflamatória e têm ação no cérebro, podem pesquisar melhor.
Ervas. Nunca acreditei muito no poder dos chás mas com este estudo percebi que a ansiedade é um distúrbio físico, relacionado com os químicos que existem no cérebro (ou estão em falta, neste caso).
O GABA é um ácido neurotransmissor (mensageiro químico) produzido naturalmente pelo organismo. Transmite informações de neurónio em neurónio, regulando o sistema nervoso.
A baixa libertação de GABA está associada a distúrbios mentais, como a ansiedade. Os medicamentos têm como função potenciar a ação do GABA no sistema nervoso.
Existem ervas que têm este papel, assim como outros benéficos para o combate da ansiedade:
- Passiflora
- Camomila
- Valeriana
- Erva de S. João (bom para depressão, tomar durante 5 dias quando se está em baixo)
- Cidreira
- Hortelã
Esta é a minha nova lista de chás, depois de fazer a minha pesquisa e aceitar sugestões de fora. Façam a vossa pesquisa, não sou médica, nem psicóloga nem nada que se pareça, estou apenas a partilhar aquilo que poderá ser útil ao outro também.
Não sei se me safo com esta estratégia sem medicamentos, posso dizer que depois de algumas semanas quase não sinto palpitações e sinto-me fisicamente melhor. Claro que isso me deixa mais contente e uma coisa leva a outra. Acredito, estou a tentar, vou provavelmente falar com um psicólogo de qualquer das formas.
Hoje falaram-me (mais uma pessoa com antecedentes de ansiedade e depressão) de consultar um endocrinologista e pedir-lhe para fazer análises a todas as hormonas relacionadas com ansiedade. Basicamente ficamos a saber o que é que está em falta e descompensado e facilita a correção. Achei uma boa dica.
O mundo está virado do avesso. Não parece que possamos fazer grande coisa. O que está na nossa mão é sermos bons uns para os outros, cuidar de nós e do próximo. Não ao medo e sim ao amor.
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Por fim um trabalho que quero sempre recordar, este texto escrito pelo Dr. Vítor Rodrigues, Psicólogo e Psicoterapeuta:
O barro criativo
Os mitos de criação, explicitando o modo como o mundo foi criado, variam muitíssimo conforme os lugares e os povos. Não pretendo aqui discuti-los pois estou especialmente interessado nos que se referem à criação dos seres humanos. Nestes, é comum a afirmação de que os seres humanos foram criados a partir do barro[1].
- Na Mitologia grega, os primeiros deuses a governarem a Terra, antes de Zeus e dos deuses do Olimpo, foram os Titãs, chefiados por Cronos (o deus do Tempo). Estes foram vencidos numa batalha contra os deuses olímpicos e Zeus tornou-se o novo deus todo-poderoso. Prometeu e Epimeteu, que eram Titãs mas não tinham participado nesta guerra e não foram aprisionados no Tártaro (uma parte do submundo grego), foram encarregues de criar o ser humano. Prometeu (o tal que roubou o fogo dos deuses para o doar à Humanidade) modelou a figura humana a partir do barro (ou da terra) e, depois, a deusa Atena (a deusa da sabedoria) insuflou-lhe vida.
- Na Bíblia, no Genesis 2:7, diz-se que O Senhor Deus formou o homem a partir da poeira do chão e soprou nas suas narinas o alento da vida; e o homem tornou-se uma alma vivente”.
- No Alcorão, (Alcorão 23:12), diz-se que Deus criou o homem a partir do barro.
- Na Mitologia egípcia, um dos deuses primordiais, Khnum, também chamado de “divino oleiro”, o deus das fontes do Nilo (cujas inundações traziam barro e vida), criou os corpos das crianças humanas numa roda de oleiro e colocou-os nos úteros das suas mães.Também se diz que criou os outros deuses a partir de si mesmo.
- Na Mitologia suméria, os deuses Enki ou Enlil criaram a Humanidade para servi-los a partir de barro e sangue (note-se que, para alguns, o sangue é o veículo da energia da Alma).
- Na Mitologia Zoroastriana, o boi primordial e, depois, o homem primordial, são criados por Ahura Mazda a partir da lama.
- Na Mitologia chinesa, os seres humanos foram criados por Nuwa, a deusa-mãe, a partir de terra amarela.
- Os Maoris diziam que Tāne Mahuta, deus da floresta, teria criado a primeira mulher a partir do barro e ter-lhe-ia insuflado a vida.
- Para os antigos Incas, o deus criador Viracocha também teria formado os seres humanos a partir do barro.
Numa interpretação antropológica, é fácil constatar a ideia de que a Criação deve ter lugar a partir de uma substância primordial sobre a qual uma força divina actua, dando-lhe forma e insuflando-lhe vida. Também é verdade que, para os povos antigos, o barro era um elemento de extrema importância, pois graças a ele podiam criar formas úteis - e fundamentais para o desenvolvimento da civilização. Admite-se também que a primeira escrita sistemática terá sido criada a escrita cuneiforme dos antigos sumérios, gravada em tábuas de argila desde há cerca de 6.000 anos. Terá sido antecedida por notações encontradas em objectos de argila e datados de uns 35.000 anos.
Num artigo recente, Finkelstein[2] enumera 7 modos “inesperados” de a argila e a moldagem serem terapêuticas. Inspiremo-nos nesse artigo.
Prazer táctil. Geralmente gostamos de “pôr a mão na massa”. O trabalho no barro espelha-nos, dá-nos a impressão de estarmos efectivamente a expressar algo de nós ao criar algo que nasce, assim, do nosso corpo e mente. Um pouco de nós fica na peça criada - mais tarde, a mesma peça permanece como um espelho: ficámos, de certo modo, presentes nela.
Uma experiência total. O trabalho com o barro implica olfacto, tacto, visão, audição (ao escutar a roda, por exemplo), por vezes até o gosto. Tem um lado sensual óbvio e, ao mesmo tempo, implica a nossa mente imaginativa e, muitas vezes, uma expressão das nossas emoções conscientes ou inconscientes (quando nos deixamos “levar”, quando nem sabemos o que iremos fazer antes de o fazer).
Expressão consciente e inconsciente. Ao modelar o barro, sentimos que estamos no controlo e também que estamos a expressar um pouco do que somos. O barro sem forma recebe a nossa marca, que lhe dá forma. Podemos moldá-lo de acordo com as nossas emoções e os nossos pensamentos, colocando nele esforço, delicadeza, formas de muitos tipos, traços, escrita. Mais tarde, o peça criada fica como uma memória de nós mesmos: “fiz isto outrora”. Desejos, aversões, medos, fantasias de todos os tipos podem ficar ali plasmados. Podemos até surpreender-nos com o que fizemos e interrogar-nos acerca do que surgiu de dentro de nós. Por vezes, no barro, partes de nós menos conscientes tornam-se visíveis-palpáveis como coelhos que saíram da toca (onde estavam invisíveis).
Antídoto cultural. A ideia aqui é que o trabalho com o barro exige tempo, tem o seu ritmo, não admite pressas nem a corrida para resultados demasiado imediatos. Além disso, em lugar da mente ansiosa sempre a correr para o futuro incerto, obriga-nos a sentir directamente o que está a acontecer “aqui e agora” e a dar-lhe atenção. A moldagem focaliza-nos. Também nos ensina a ter paciência e a aceitar a imperfeição. Existe o tempo da moldagem e o tempo do fogo, para completar a peça e “solidificar” o que fizemos, dando-lhe permanência. O fogo representa também a energia criadora. Falaremos disso adiante.
Libertar e expressar emoções, mesmo as mais negativas. O barro pode ser agredido, golpeado, atirado, insultado e, mesmo assim, permanecer como matéria remoldável. Expressar emoções no barro é seguro e ajuda-nos a senti-las e a vê-las. Mesmo a peça completa pode ser destruída sem problema - e, às vezes, destruí-la pode ser bastante satisfatória. Sentimo-nos com pleno poder para recomeçar. Também sentimos o poder de criar ou destruir ou ambas as coisas, numa busca de expressão e aperfeiçoamento. Também vamos aprendendo e evoluindo no trabalho com o barro - e a felicidade humana está do lado da expressão e do crescimento[3].
Meditação. Trabalhar o barro pode ajudar-nos a sair mais da cabeça para estar mais no corpo e no tempo presente. Nesse sentido, pode ter muito de meditativo e de fluxo interior. Além disso, deixar a Alma, ainda mais que o nosso corpo, actuar no barro pode tornar-se numa verdadeira meditação…
Um senso de comunidade e de pertença. O trabalho no barro, muitas vezes feito em conjunto e em aprendizagem e/ou partilha, ajuda a criar um sentimento de grupo, de cumplicidade e propósitos comuns. Do mesmo modo, o respeito pelo trabalho uns dos outros e um senso de leveza, mesmo de brincadeira, fazem bem a todos. A atmosfera criada ajuda a quebrar com a dureza do quotidiano e a levar-nos mais longe no mundo interior.
O trabalho com o barro, para Finkelstein, implica ainda trabalhar um material em bruto, com muitos milhões de anos de idade, para criar algo que nunca existiu antes. Para mim, implica igualmente trabalharmos sobre o “velho” eu para permitirmos que este, ao criar algo novo no barro, se recrie a si mesmo. Ao trabalhar o barro estamos, em certo sentido, a projectar nele um pouco de nós mesmos/as e a refazer-nos.
Um texto para o trabalho dos oleiros.
Toca o barro. O teu corpo em contacto com a massa, as tuas mãos prolongando o cérebro, os teus sentidos à escuta das formas de dentro e de fora. Colocas-te no barro e o barro mostra-te em muito do que és. Recebe os teus sentimentos, muda de forma com a tua imaginação, também se solidifica com o teu fogo. As formas que ali plasmas saem de ti, filhas da tua mente e das tuas emoções. Por detrás delas, a tua Alma. Fica bem presente, qual tu és, e deixa-te ser com a substância que tocas. Acalma-te com o barro mas, antes, deixa-te lutar com ele. A tua mente, focada no barro, deixa de estar dispersa. As tuas emoções, colocadas no barro, ficam claras e perdem o poder sobre o teu corpo. Quando moldas o barro, também te moldas um pouco. Quando conversas com ele, falas de ti. A tua alma, colocada no barro, abençoa quem vier a tocá-lo, se o quiseres.
Agora imagina-te como um ser divino criando formas e insuflando-as depois com vida. Podes até tornar sagrado e silencioso o que moldas. Podes sentir que participas da Criação e, no fim, vês que o que fizeste é bom. Não importa se é perfeito - é bom porque foi criado, é bom porque foi feito com terra-mãe, e é bom porque és tu.
O que ficará, mais tarde, é um pedaço de ti que poderá resistir por muito tempo.
Quando chegar o momento da cozedura, poderás ainda, em silêncio meditativo, colocar na peça que recebe o fogo um pouco mais da tua alma. Poderás projectar nela a tua intenção, um pouco de ti habitando a peça insuflada assim. Com a tua respiração, uma centelha do teu ser enviada para a matéria animada. Transformando, transformas-te. A matéria bruta modifica-se, como tu. Como quando, outrora, estátuas eram feitas para serem habitadas pelos deuses, peças eram feitas para transportar as suas oferendas.
No fim, tudo o que fizeres com o barro valerá a pena.
Vítor Rodrigues
Babilónia
Com pátios interiores e com palmeiras
Com muros de tijolo com pequenos tanques
Com fontes com estátuas com colunas
Com deuses desenhados nas paredes de barro
Com corredores e silêncios e penumbras
Com vestidos de linho tocando a pedra pura
Com cinamomo e nardo
Com jarras donde corria azeite e vinho
Com multidões com gritos com mercados
Com esteiras claras sob os pés pintados
Com escribas com magos e adivinhos
Com prisioneiros com servos com escravos
Com lucidez feroz com amargura
Com ciência e arte
Com desprezo
Babilónia nasceu de lodo e limo
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto
Arte Poética I
Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado. O sol é pesado e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas não caibo na sombra. A sombra é uma fita estreita. Mergulho a mão na sombra como se a mergulhasse na água.
A loja dos barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois da taberna fresca e da oficina escura do ferreiro.
Entro na loja dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida de preto. Está em frente de mim rodeada de ânforas. À direita e à esquerda o chão e as prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e amontoadas: pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro: barro cor-de-rosa pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar.
A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética.
Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação.
Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.
Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível.
Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis, nem a Deméter, nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino.
O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece.
Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão. Semelhante ao corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa.
É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Notas: Arte Poética I foi publicado pela primeira vez na revista "Távola Redonda", Dezembro 1962. Seguidamente a Arte Poética I e II foram publicadas com alterações em "Geografia", 1967
[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Creation_of_life_from_clay
[2] Finkelstein, Jo-Ann (2020): 7 unexpected ways clay is therapeutic. Psychology Today, em https://www.psychologytoday.com/gb/blog/demystifying-talk-therapy/202003/7-unexpected-ways-clay-is-therapeutic
[3] Rodrigues, Vítor (2015): Constrói a tua Felicidade. Lisboa: A Esfera dos Livros.